30.8.10

segunda-feira



Acordo. Mais um dia de possibilidades feias e bonitas. O difícil é me inventar a cada passo que proponho vida àquele cara que ratifica com olhos incrédulos minha ausência de imaginação. Tento um livro - algum Kerouac - , escalo com a decência de um alpinista uma árvore galhuda porém sem folhas ou frutos. Ao atingir o topo da mesma, exerço o silêncio necessário a sua altivez. Estou isolado, escondido do mundo, que de maneira acéfala movimenta seus braços de polvo em todos os sentidos, completamente sem sentido. Sentindo alguma coisa, puxo minha caneta e rabisco meu braço pálido de veias azuis, desvendando sem sucesso a loucura sob meus pés. Realmente o Polvo de braços aleatórios é um um bicho complexo e monstruoso, que nem deus (sempre minúsculo) dotado de toda sua credibilidade cega - pastor e suas ovelhas - conseguiu derrotar. Mas graças a deus, deus está morto! Então continuo minha peleja de entender, criar um significado distante do Polvo para meu momento. A caneta insiste em rabiscar agora meu peito, aonde reparo um piercing esquecido, e tergiverso sobre a felicidade intensa que teria se possuísse um concorrido clitóris! Pois é... me satisfaço com a desculpa da qualidade sobre a quantidade.
Minha amiga se vai, a caneta cai em queda livre, mas sem antes esbarrar em um galho e deixar seu sangue preto. Abandonado, perdido de mãos vazias, subo mais um pouco. Agora literalmente no topo, percebo o Polvo cada vez mais insano, os filmes de zumbis não são trash, mas sim documentários sociais de verossimilhança assustadora.
Finalmente resolvo descer, não para me misturar, o motivo mais nobre é a cervejinha que deixara no congelador. Tenho que evitar sua petrificação, a liquidez é volúvel se adaptando a todos os lugares propostos, uma crítica implícita a nossa "feliz" sociedade de formas, mas sem nenhum conteúdo. Realmente salvar-lhe-ei, meu ato heróico!
Em meu primeiro passo de descida, me deparo olhos nos olhos com um pássaro sem asas. Engraçado, logo chamo o bichano de Pedro, acho que uma tentativa de criar um espelho distorcido. Pedro olha Pedro. Ele lacrimeja, eu choro. Pedro sem asas se precipita em alguns passos e cai, sem esbarrar em nenhum galho. Uma linda queda sem medo ou tristeza. Covarde, Pedro desce a árvore com cautela, com olhos fixos em Pedro estatelado em meio ao Polvo.
O bichano em respirações calmas escuta um cantarolar intermitente de alguma canção que invento, uma provável canção de ninar. Ele dorme para não acordar. Finalmente entendo tudo, estou feliz. Resgato minha cervejinha no congelador e bebo a alegria de me inventar.
Mais um dia cheio de possibilidades...